Melaço, por Ricardo Oiticica


O melaço de quando cana. O melaço enquanto sangue. O mel, enfim, do bagaço. É esse desvio semântico – de cana, mel e bagaço – que deixa Batalha de fora da lira edulcorada que se lê por aí.No porta-mala do poeta há presunto, no porta-luvas do poeta há presença, no seu porta-chave não há saída. Porque a coisa começa em Vigário Geral e acaba em Vaz Lobo, onde o poeta conhece, respectivamente, a banda Afroreggae, surgida da famosa chacina, e a pombagiruda Dezessete, que o trocou por “um policial tipo pulseira-de-prata-malvadão” que adora dar porrada em pederastas, piranha-assumida, ninfomaníacas, travestis, bicha-assumida, prostituta-tipo-praça-Mauá, isto é, odiava Copacabana. Pra quem vem do posto 6, como eu, é tomar a amarela via vermelha, logo depois de onde a favela derreteu, em seguida um valium via oral, e finalmente a Automóvel Clube, como quem procura “a quarta opção do semáforo”, numa região delimitada pelos cemitérios de Ira já e Inhaúma.
O poeta bem que avisou: “Cerol, para dinamitar tudo que for viga realista/ Cerol, para erguer novas pontes, pontas, poesias”. Depois que o viaduto derreteu, uma alternativa é a Suburbana, rebatizada D. Hélder Câmara sob protestos da Universal, que tem seu Vaticano bem na beira dessa pista. Pois bem: foi em Vaz Lobo que conheci Rogério Batalha, aluno da UniverCidade (cuidado revisores), num curso sobre a dialética da malandragem em que terminei aluno do aluno. (...)É uma poesia desconfiada de todo o poder, inclusive do da palavra, o que o põe na contramão das tendências formalistas: “mesmo que eu escreva/ a palavra flor/ cadê a haste?/ cadê o cheiro?/ cadê a cor?” (...) O poeta pertence a um time que toma de assalto a literatura bem-pensante dos inocentes do Leblon: Cigarros, cigarras vídeos, vinhos / Noite de autógrafo ou verão? / Imagina, a vida que eu queria / Livraria o Leblon. / Relíquias, revistas / Amigos de amídalas / Bafo na nuca da solidão / Eu é que não faço / As bainhas do coração. / A poética pós-túnel, para quem já descobriu o romance de Paulo Lins, oriundo da Cidade de Deus, e a prosa curta de Mauro Pinheiro, ganha com Rogério Batalha mais luz depois do túnel.
 

(Ricardo Oiticica, 2002)