Comentário de Marcelo de Araújo Sant'anna

Melaço. A semântica da palavra remete a algo envolvente, viscoso, consistente. E é assim que se apresenta o livro de Rogério Batalha. Sua poesia é impactante, moderna, lúbrica, cheia de adjetivos, que por isso mesmo, a isola. De doce, o mel passa a amargo. É o gosto de sangue que escorre de suas palavras, fora de padrões convencionais, distante de querer agradar e, no entanto, profunda em sua investigação e sua denúncia. Aos parnasianos de outrora, Batalha mostra que a poesia, mais do que formulações métricas e rimadas, está no conteúdo. O eu-lírico do autor vem a serviço do belo das ruas, da crueza das relações carnais, da noite vadia. Não se fala de amor. Fala-se de tesão, de carne, de desejo. E também de morte. A chacina de Vigário Geral marcou para sempre uma comunidade e sua poesia é o alto-falante dos que se calam, por medo ou por não saberem como falar, para quem falar.
Envolvido com o movimento do Afroreggae, voz que se ergue da tragédia, o poeta utiliza-se do jogo de palavras para dar voz aos desvalidos, aos marginais (porque estão à margem), aos excluídos. O Afroreggae surge dos escombros de uma calamidade, de uma vergonha nacional, de um massacre pelo poder instituído, do crime legitimado pela farda. Como a Fênix, o grupo surge das cinzas e a poesia em Melaço é como o vôo da ave, antes e depois das cinzas. Podre, podre. Podres poderes, podre sociedade. Podre violência. Podre covardia. Sua palavra é o contra-tiro. É revólver contra canhão. A morte em Vigário Geral é também cultural. A sociedade esmaga os desvalidos. Eles não têm escolha, são levados. A metralhadora giratória de Batalha aponta contra as desigualdades. Surge a voz do pós-túnel.O poeta Cazuza já dizia que "a burguesia fede, a burguesia quer ficar rica". Batalha também o diz, mas de um outro prisma, do lado de lá. Bastardia e nobreza são envolvidas num mesmo jogo. A nobreza é contaminada pela bastardia, e vice-versa. O real é constituído a partir de uma imagem. É na troca de olhares entres esses dois mundos, tão diversos, que a poesia de Batalha encontra espaço. Seu olhar é o olhar do subúrbio, mas há uma simbiose derivada de sua consciência no mundo. Não há ingenuidade. O preconceito existe, as injustiças existem. Não há lugar para o disfarce: e ele solta o verbo. É o negro que se quer nobre. Há uma simbiose entre o povo e a aristocracia. É o negro de sangue azul. O livro pode ser dividido em duas partes, que se complementam por falarem do mesmo mundo. Na primeira parte, os poemas são mais voltados para a desigualdade, para a violência, para as contradições. Na segunda, o olhar continua pós-túnel ou pré-túnel, dependendo do ângulo que se olhe, mas a sexualidade é mais aflorada. Há uma negação e desconstrução do discurso amoroso. As relações são viciadas e viciosas. A malandragem é retratada, a inocência está perdida. O jogo do amor é um jogo de sedução. Há um encontro de corpos, não de almas.Sua poesia é um grito de horror e recusa. Recusa às injustiças, recusa a não ter direito:Minto, roubo, finjo- criança querendo -Ver, ter, saberA criança carente é para a sociedade uma ameaça, são futuros marginais. Fecham-se os olhos, fecham-se as oportunidades, impossibilita-se o futuro. A poesia de Batalha traz à tona essa voz da criança que não é ouvida. Voz fraca sem repercussão. Por isso força-se a passagem. Se o grito de dor não ecoa aos privilegiados ouvidos, a violência ecoará forte a todos os ouvidos. Não há mais divisão. Estão todos envolvidos num chafurdar de lama e gritos. Não importa para Batalha em quem vai doer a palavra-tiro. Suas preocupações são outras: "nenhum exame balístico registrará a causa morte da tristeza da menina". A sua poesia é uma afiada navalha nas convenções da sociedade, em suas hipocrisias e em seu jogo de disfarces. Mete-se o dedo nas feridas e elas são muitas. Vêm à tona as mazelas da sociedade. Sua palavra é dura, mas ainda assim poesia. É como o grupo: "Mas mesmo assim, Afroreggae".A família como instituição também é desconstruída aos olhos do leitor. Um almoço familiar, que se pressupõe uma reunião de alegria, é pincelado com tinta negra. No poema "As galinhas mortas" a linguagem é utilizada como ironia: "um garfo tossia, um velho caía". Em um poema dedicado à família, vemos um desfile de personagens que fazem parte da sociedade, mas que se escondem atrás da visão de uma família sólida e feliz: é o tio que queria ter nascido mulher, a irmã mais pobre que cobra de seus parentes o soldo de sua pobreza, a sobrinha meio putinha. E por aí vai. Não são personagens fictícios: eles moram em nossas casas, fazem parte de nossas famílias. Nesse instante, a poesia pós-túnel é também a voz do pré-túnel. São todas as vozes num único discurso repetitivo, tradicional, familiar.No poema "Luísa Liberato", o autor debocha das máscaras com que cada um estabelece seu espaço na sociedade. A marcação teatral é ridicularizada. Luíza que se apresenta como modelo-manequim-artista-de-tv: não pertence ao pós-túnel. Ela está centrada numa outra posição, ao que o poeta responde, dando ênfase ao seu lado marginal. Seu jogo de palavras remete à sexualidade latente. Centauro-fêmea e suzie-amulatada constróem uma imagem de explosão de sensualidade. A demarcação do espaço social revela sua reflexão filosófica, é a vida e sua universalidade que está sendo pensada.Observando o poema malícia:Me tenha como vícioAceite os meus de bom grado Que o seu coração palpite, mire,dispare sobressaltos.Não quero nem saber Da meia-água dos teus fadosQuero o teu choro, depois o risoMalícia de asfaltoE enquanto issoVou te mostrando(desde o início)Meu jeito hábil.Há no poema um jogo estabelecido de desejo. Não há lugar para o amor. O que há é uma relação viciada. Como todo vício, é difícil abster-se. O prazer que dele provém aprisiona e não dá lugar a sentimentos submersos. Somente na hora do ato sexual em si é que o coração deve disparar, sobressaltar-se. No verso "Não quero nem saber da meia-água dos teus fados", há um encontro muito bem ajambrado entre o coloquial e a erudição, que revela que não há cumplicidade além da cama. A malícia está presente em todo o poema, quer seja a malícia do malandro, da mulher vivida ou mesmo da prostituta, quer seja a malícia do jogo viciado. O jogo é estabelecido desde o início para que a crise não se estabeleça com um dos jogadores querendo aprofundar a relação.O universo de Melaço é intrigantemente belo e caústico. O mundo pós-túnel é o cenário principal. Suas personagens marginalizadas são as protagonistas que revelam, por trás da violência, dos vícios, dos crimes, da pobreza, um mundo adornado de sentimentos à flor da pele. É a pulsão dos que estão por baixo, sufocados, e que não agüentam mais todo o peso que lhes foi e é legado diariamente. A palavra de Rogério Batalha é a implosão da ordem estabelecida. Ao trazer o universo de sombras à luz da ribalta, jogar luz nos escaninhos da sociedade, o poeta nos ensina que "Sagacidade é saber farejar delícias!"

Marcelo de Araújo Sant'anna