Melaço. A semântica da palavra remete a algo envolvente, viscoso, consistente. E é assim que se apresenta o livro de Rogério Batalha. Sua poesia é impactante, moderna, lúbrica, cheia de adjetivos, que por isso mesmo, a isola. De doce, o mel passa a amargo. É o gosto de sangue que escorre de suas palavras, fora de padrões convencionais, distante de querer agradar e, no entanto, profunda em sua investigação e sua denúncia. Aos parnasianos de outrora, Batalha mostra que a poesia, mais do que formulações métricas e rimadas, está no conteúdo. O eu-lírico do autor vem a serviço do belo das ruas, da crueza das relações carnais, da noite vadia. Não se fala de amor. Fala-se de tesão, de carne, de desejo. E também de morte. A chacina de Vigário Geral marcou para sempre uma comunidade e sua poesia é o alto-falante dos que se calam, por medo ou por não saberem como falar, para quem falar.
Envolvido com o movimento do Afroreggae, voz que se ergue da tragédia, o poeta utiliza-se do jogo de palavras para dar voz aos desvalidos, aos marginais (porque estão à margem), aos excluídos. O Afroreggae surge dos escombros de uma calamidade, de uma vergonha nacional, de um massacre pelo poder instituído, do crime legitimado pela farda. Como a Fênix, o grupo surge das cinzas e a poesia em Melaço é como o vôo da ave, antes e depois das cinzas. Podre, podre. Podres poderes, podre sociedade. Podre violência. Podre covardia. Sua palavra é o contra-tiro. É revólver contra canhão. A morte em Vigário Geral é também cultural. A sociedade esmaga os desvalidos. Eles não têm escolha, são levados. A metralhadora giratória de Batalha aponta contra as desigualdades. Surge a voz do pós-túnel.O poeta Cazuza já dizia que "a burguesia fede, a burguesia quer ficar rica". Batalha também o diz, mas de um outro prisma, do lado de lá. Bastardia e nobreza são envolvidas num mesmo jogo. A nobreza é contaminada pela bastardia, e vice-versa. O real é constituído a partir de uma imagem. É na troca de olhares entres esses dois mundos, tão diversos, que a poesia de Batalha encontra espaço. Seu olhar é o olhar do subúrbio, mas há uma simbiose derivada de sua consciência no mundo. Não há ingenuidade. O preconceito existe, as injustiças existem. Não há lugar para o disfarce: e ele solta o verbo. É o negro que se quer nobre. Há uma simbiose entre o povo e a aristocracia. É o negro de sangue azul. O livro pode ser dividido em duas partes, que se complementam por falarem do mesmo mundo. Na primeira parte, os poemas são mais voltados para a desigualdade, para a violência, para as contradições. Na segunda, o olhar continua pós-túnel ou pré-túnel, dependendo do ângulo que se olhe, mas a sexualidade é mais aflorada. Há uma negação e desconstrução do discurso amoroso. As relações são viciadas e viciosas. A malandragem é retratada, a inocência está perdida. O jogo do amor é um jogo de sedução. Há um encontro de corpos, não de almas.Sua poesia é um grito de horror e recusa. Recusa às injustiças, recusa a não ter direito:Minto, roubo, finjo- criança querendo -Ver, ter, saberA criança carente é para a sociedade uma ameaça, são futuros marginais. Fecham-se os olhos, fecham-se as oportunidades, impossibilita-se o futuro. A poesia de Batalha traz à tona essa voz da criança que não é ouvida. Voz fraca sem repercussão. Por isso força-se a passagem. Se o grito de dor não ecoa aos privilegiados ouvidos, a violência ecoará forte a todos os ouvidos. Não há mais divisão. Estão todos envolvidos num chafurdar de lama e gritos. Não importa para Batalha em quem vai doer a palavra-tiro. Suas preocupações são outras: "nenhum exame balístico registrará a causa morte da tristeza da menina". A sua poesia é uma afiada navalha nas convenções da sociedade, em suas hipocrisias e em seu jogo de disfarces. Mete-se o dedo nas feridas e elas são muitas. Vêm à tona as mazelas da sociedade. Sua palavra é dura, mas ainda assim poesia. É como o grupo: "Mas mesmo assim, Afroreggae".A família como instituição também é desconstruída aos olhos do leitor. Um almoço familiar, que se pressupõe uma reunião de alegria, é pincelado com tinta negra. No poema "As galinhas mortas" a linguagem é utilizada como ironia: "um garfo tossia, um velho caía". Em um poema dedicado à família, vemos um desfile de personagens que fazem parte da sociedade, mas que se escondem atrás da visão de uma família sólida e feliz: é o tio que queria ter nascido mulher, a irmã mais pobre que cobra de seus parentes o soldo de sua pobreza, a sobrinha meio putinha. E por aí vai. Não são personagens fictícios: eles moram em nossas casas, fazem parte de nossas famílias. Nesse instante, a poesia pós-túnel é também a voz do pré-túnel. São todas as vozes num único discurso repetitivo, tradicional, familiar.No poema "Luísa Liberato", o autor debocha das máscaras com que cada um estabelece seu espaço na sociedade. A marcação teatral é ridicularizada. Luíza que se apresenta como modelo-manequim-artista-de-tv: não pertence ao pós-túnel. Ela está centrada numa outra posição, ao que o poeta responde, dando ênfase ao seu lado marginal. Seu jogo de palavras remete à sexualidade latente. Centauro-fêmea e suzie-amulatada constróem uma imagem de explosão de sensualidade. A demarcação do espaço social revela sua reflexão filosófica, é a vida e sua universalidade que está sendo pensada.Observando o poema malícia:Me tenha como vícioAceite os meus de bom grado Que o seu coração palpite, mire,dispare sobressaltos.Não quero nem saber Da meia-água dos teus fadosQuero o teu choro, depois o risoMalícia de asfaltoE enquanto issoVou te mostrando(desde o início)Meu jeito hábil.Há no poema um jogo estabelecido de desejo. Não há lugar para o amor. O que há é uma relação viciada. Como todo vício, é difícil abster-se. O prazer que dele provém aprisiona e não dá lugar a sentimentos submersos. Somente na hora do ato sexual em si é que o coração deve disparar, sobressaltar-se. No verso "Não quero nem saber da meia-água dos teus fados", há um encontro muito bem ajambrado entre o coloquial e a erudição, que revela que não há cumplicidade além da cama. A malícia está presente em todo o poema, quer seja a malícia do malandro, da mulher vivida ou mesmo da prostituta, quer seja a malícia do jogo viciado. O jogo é estabelecido desde o início para que a crise não se estabeleça com um dos jogadores querendo aprofundar a relação.O universo de Melaço é intrigantemente belo e caústico. O mundo pós-túnel é o cenário principal. Suas personagens marginalizadas são as protagonistas que revelam, por trás da violência, dos vícios, dos crimes, da pobreza, um mundo adornado de sentimentos à flor da pele. É a pulsão dos que estão por baixo, sufocados, e que não agüentam mais todo o peso que lhes foi e é legado diariamente. A palavra de Rogério Batalha é a implosão da ordem estabelecida. Ao trazer o universo de sombras à luz da ribalta, jogar luz nos escaninhos da sociedade, o poeta nos ensina que "Sagacidade é saber farejar delícias!"
Marcelo de Araújo Sant'anna
BLOG OFICIAL do poeta e letrista. Parceiro de Agenor de Oliveira, Maurício Barros, Mauro Sta Cecília, Moacyr Luz, Nilson Chaves, entre outros. Com músicas interpretadas por Edy Star, Frejat, Moacyr Luz, Nelson Sargento, Ney Matogrosso, Thiago Amud, Viviani Godoy, entre outros. Autor de livros de poemas prefaciados por Antonio Cícero e Waly Salomão. Seus últimos trabalhos foram publicados pela Editora Texto Território.