Cidade fundida, por Oswado Martins


Das cidades feitas cidade A poesia do novo livro de Rogério Batalha transborda das páginas. Abarca a cidade, faz dela seu visgo, sua intempérie de palavras. A ousadia do poeta cria, na secura com que são escritos os poemas, a imagem do gozo pútrido e libidinoso que enforma de delícias os limites da própria cidade. Anda por ela – aqui e ali – na tragicidade com que o périplo peripatético é construído: uma nova lição das coisas, da cidade, vê-se surgir. A cidade não mais bipartida, mas fundida, amalgamada. Dubiedade do mesmo: os espaços são ocupados pelas delícias, os espaços são ocupados pela derrisão de quem se sabe membro de uma sociedade em ruínas, e, entretanto, aptos, ambos, para os prazeres que se escondem entre os escombros de si mesmos.
Aqui e ali são o buraco negro, a informação dúbia de onde se extraem a merda e as delícias que a merda possibilita. Não há, na poesia de Batalha, como postula certa sociologia, duas cidades – uma apta para as delícias; outra, para os trabalhos diuturnos da escravidão, do abuso a que seriam submetidos parte de seus habitantes. Há uma e única cidade – abismada – a conviver com os fantasmas de seu passado, com sua vocação para o prazer. O poeta delicia-se – como comprovam seus versos – com os umbigos, as delícias do corpo solto, mas, nesse deliciar-se, em que é também crítico dos aspectos sujos de seus botecos, de suas latrinas, alerta para as possibilidades de ruína dos ambientes burgueses e bem cheirosos da cidade ajardinada, maravilhada de si mesma. O Rio “atado ao dissolver dos sonhos e à coagulação do concreto tem como sina sua lábia intestina já que ilha nenhuma havia (para ancorar) senão o abrupto do seu olhar.”. A linguagem da lábia intestina que o poema traduz não só nos devolve à cidade como com ela faz a contraluz da palavra: nada determina o fim do périplo trágico: Volta-se ou se sai de casa – após fazer o leitor andar a e pela cidade – com o único sentimento de que a busca da linguaimagem – poética ou não – é um porto sem ilhas, uma escala impossível, um não metódico, para quem saiba que farejar delícias é naufragar na sagacidade. Se a volta de Ulisses a Ítaca pressupõe o reconhecimento de si mesmo, nas ilhas-não de Rogério Batalha nenhum reconhecimento é possível, o destino do indivíduo que perambula pelas ruas, bares e corpos é saber-se cada vez mais desconhecido e estranho. Não há oráculo que desvele os destinos dos homens sem identidade, por isso, os habitantes desta cidade fundida podem abismar-se das belezas que as fezes ou as nuvens formulam na sua capacidade de criar instantâneos que se mostram e escondem a cada palavra, a cada olhar, quando o poeta se abeira da fugacidade física das coisas que nos habitam e que habitamos, sem que neste habitar exista a possibilidade de dissociação. 


Oswaldo Martins é escritor e poeta, formado em letras, mestre em Literatura Brasileira pela UERJ. – 2012