Sobre o Poema Sujo


Há muitos anos me deleito com o Poema Sujo, de Ferreira Gullar e, em particular, um  aspecto me instiga muito: a problemática do tempo. Para tanto, Gullar dialoga o tempo todo não com o amor sentido, mas com o objeto amado, isto é, a concretude primária das coisas.
Daí utiliza a memória, também, para ratificar que ali o tempo é outro, assim “como uma coisa está em outra”, ou seja, é nas idas e vindas dessa memória que o poema desvincula-se de qualquer conotação mística. “Meu corpo feito de carne e osso”. Ora, é notório que o Poema Sujo rejeita tudo o que não for material. Justamente porque para o jogo do vivido com o não vivido só interessa que “o tempo se torne fenômeno meramente químico”, onde inúmeras tardes caibam dentro de uma tarde; as diversas possibilidades concretas que um corpo habita.
E no limiar dessa memória-alucinação-realidade, cabe assinalar, que o apodrecimento das coisas, além de ser intrínseco é conatural a determinadas delícias e mazelas. Ora, o líquido que escorre do sexo e das bananas traz mais do que despojos dicotômicos entre si, pois, neles, há sem dúvida alguma uma leitura analógica.
Visto que, ali não importa apenas a marca cruel da deterioração, mas a renovação que traz no seu bojo. E é aí que está contida sua maior virilidade, é no relógio-das-coisas que o mel esvai-se, transforma-se e novamente esvai-se (como um pênis?!), possuindo cada objeto-corpo sua própria cosmologia.
Logo, não é à toa nem por acaso que o poema é praticamente todo escrito em letras minúsculas, já que pretende captar a transitoriedade do corpo e dos fatos vividos. Onde a tina da vida ora escorre seus líquidos para o ralo, ora seus líquidos alçam vôo para as nuvens. Sendo assim, é imperativo para a leitura desse poema, atentar para o seu tempo enviesado.
(Rogério Batalha)